Parece óbvio que um filme que traz como carro-chefe o tema do incesto associado à homossexualidade criará ruídos, identificações e levantará tabus políticos e sociais no meio em que for divulgado, não é?
Bem, este não é o caso de Do Começo ao Fim. Embora corajoso em sua empreitada e valoroso pelo simples fato de sua existência, o longa dirigido e roteirizado por Aluizio Abranches não emociona mais que qualquer romancezinho adolescente. Aliás, não chega nem a isso, porque pelo menos os romances de hoje são ou apimentados com humor ou com grandes tragédias ou com ambos (como é o caso de Moulin Rouge), fazendo das produções algo interessante. Do Começo ao Fim, ao contrário, segue no mesmo tom pastel desde o primeiro minuto de projeção, sem altos e baixos.
O longa se propõe um drama singelo, uma história de amor entre dois irmãos de mesma mãe e pais diferentes que não se desgrudam desde a infância e constroem uma relação de absoluta dependência afetiva, emocional, física, etc... No entanto, sobre esta estrutura simples o roteiro propõe uma questão tensa e sobre a qual se podia fazer um filme potente: não bastasse o fato de serem gays, o casal protagonista é composto de irmãos. No entanto, o filme não se aproveita dramaticamente de nenhum desses dois fatos, passando por cima deles como se fossem meros detalhes, o que até é bonito se vivêssemos, sei lá, em 2025? Ou estou sendo otimista?
Mas não vivemos. E um casal de irmãos homossexuais que não sofrem nenhum tipo de repressão social ou familiar é, no mínimo, surreal. O filme cria um universo tão irreal no qual essas personagens vivem que não permite nenhum pingo de identificação com nenhuma personagem ou situação, simplesmente porque é tão absurdo o grau de aceitação de tudo ali que não podemos nos sentir nem minimamente próximos da história. O tom "irreal" aproxima a história de uma fábula quase de fadas, como se a história se passasse num mundo (inexistente hoje em dia) com as condições ideiais para o amor; fato, aliás, exacerbado numa cena em que os atores-mirins estão a beira da janela e conversam com passarinhos.
A mãe aceita como se fosse a coisa mais natural do mundo (o que, aliás, a certa altura, faz parecer que inclusive era ela quem planejava isso), o pai, vivido por Fábio Assunção, não demonstra um pingo de rejeição e o pai argentino, vivido por Jean Pierre Noher, demonstra até algum estranhamento – momento no qual estamos prestes a achar que o filme finalmente vai começar – mas seu personagem morre na próxima cena, acabando com qualquer tipo de tensão dramática.
Para não falar do fato de que a família é rica e altamente instruída (fato que faz a identificação ficar ainda mais difícil, pois mesmo nas famílias ricas e instruídas, essas questões são delicadas) nem mesmo os dois personagens em questão, Tomás e Francisco, vividos respectivamente por Rafael Cardoso e Mausi Martinez, estranham a sua própria sexualidade. Em nenhum momento a descoberta de sua sexualidade parece a eles constrangedor, estranho, diferente ou, no mínimo, curioso - o que já seria normal se fossem heterossexuais - chegando ao cúmulo de Tomás, ainda criança, fazer uma piada algo maliciosa sobre a diferença de tamanho entre o seu pênis e o do irmão.
Parece que o grande medo de Aluisio Abranches é o clichê. Então digamos que o mundo inteiro aceitasse a relação dos dois, mas eles não: teríamos aí uma tensão interessante que daria conta de levar o filme adiante. No entanto, ao não colocar nenhum desses pontos em jogo, Aluisio Abranches faz pior - e aqui vem os problemas de uma direção deficiente e confusa: a cena de encontro dos dois e primeira vez que nos é mostrada uma relação íntima é logo depois – e com a mesma trilha sonora – da cena de morte de Julieta, a mãe dos meninos, vivida por Julia Lemmertz. Quase como se o filme dissesse, "ah, finalmente, agora que ela se foi poderemos ficar juntos", o que não confere visto que a mãe nunca viu problema na relação dos filhos.
A justificativa de Aluisio Abranches para o surto de seu roteiro é que seu tema não é o incesto e nem a homossexualidade, mas o amor, o que é uma desculpa piegas e absurda de um diretor que parece tentar falar de um tema pesado, ousado e profundo, mas com medo de cair no chlichê, acabou falando sobre nada. O que houve, neste caso, foi talvez um pudor temático, porque nenhum dos assuntos que poderiam fazer deste um grande filme são levados à tona e a "surrealidade" com que são tratados os tabus – como se não o fossem – levam os conservadores a achar tudo uma piada de mal gosto (mas pouco provocativa já que não discute assunto nenhum), e os homossexuais e liberais a se sentirem ultrajados por não reconhecerem nem seus dramas, nem suas idéias postas em questão.
Mas tirando tudo isso, o que sobra?
Um filme água com açúcar, com uma trilha sonora melodramática em que o grande problema é que os irmãos inseparáveis terão que se separar por algum tempo, pois um deles vai para a Rússia treinar nas olimpíadas. Mas até esse, que poderia ser um tema de um filme ruim, é um problema falso já que eles são ricos e um pode perfeitamente ir visitar o outro e, quando não podem, como o próprio filme mostra, têm o conforto de fazerem sexo pelo webcam. Oh, que sofrimento!
Não respondendo a nenhum objetivo político nem dramático, o filme se constitui numa experiência decepcionante para o que poderia ser. Julia Lemmertz, Jean Pierre Noher, Louise Cardoso e, quem diria, até Fábio Assunção são quem sustentam o filme para ele não cair no poço profundo em que se joga o roteiro. Os atores-mirins, apesar de adoráveis, têm todas as suas falas visivelmente marcadas e quase sempre sem espontaneidade e os atores protagonistas, apesar de violentamente lindos, não são capazes de sustentar só com seus corpos bem-feitos um roteiro que se trai a cada momento.
Falo aqui, talvez egoicamente, como um homossexual de esquerda que queria ter visto alguma de suas questões – uma que fosse – refletida no filme, mas que viu, mais uma vez, a lógica pequeno-burguesa tratando cheia de dedos um tema em que se merecia enfiar a mão inteira.
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